Wednesday, April 18, 2012

A tarde dos mortos-vivos

Há uma certa atracção mórbida e inexplicável pelos chamados zombies, os mortos vivos a cair aos pedaços que gostam de papar cérebros e povoam filmes e séries. Quando digo "há", claro que não me refiro às pessoas em geral, refiro-me apenas àquelas que apreciam coisas fixes.

Ora bem, eu também gosto deste universo macabro de um ponto de vista ficcional, claro. Há malta mais hardcore que chega a imaginar-se num qualquer mundo pós-apocalíptico provocado por um holocausto zombie, preparados para rebentar com uma cabeça ou duas à base de caçadeira. Mas para essas pessoas há uma ala especial no Júlio de Matos e um copinho de comprimidos a cada duas horas.

Este Domingo, não sei se inconscientemente motivado por esta recente onda de entusiasmo ou por ser apenas parvo, decidi passar a tarde no mais morto-vivo dos shoppings que eu conheço: o Beloura Shopping em Sintra (ou o "centro comercial das moscas" como já ouvi chamar-lhe). Atenção que não quero ser injusto, não estou a acusar o espaço de estar cheio de mosquedo e demais insectame... Neste caso, "moscas" acaba apenas por ser uma metáfora para o facto de não haver por lá quase ninguém.

A verdade é que já não ia lá há algum tempo e, com todos os seus defeitos, há uma coisa que ninguém consegue negar acerca do sítio: é sossegado como um cemitério judeu em Marte. É que não se ouve um pio. E a ausência de "pios" e demais sonoridades irritantes é o que desejamos para o nosso Domingo, cheio de paz e sossego. Lá fomos, eu e a minha querida mulher que se arrepende frequentemente de me seguir sem questionar aos fins-de-semana. Depois de ter visto em casa um daqueles sites de cinema, verifiquei que um dos filmes que queria ver, o "John Carter", estava em exibição nas salas do Beloura e a começar às 15h45. Esperto que nem um alho, e porque não gosto de andar a correr, congeminei logo o programa ideal que incluía almoço, visita a lojas a vulso e visionamento do filmes entre golfadas alarves de pipocas salgadas. Tudo na mais perfeita paz do Senhor.

E foi nessa mesma paz, ou pelo menos numa parecida, que encontrei o parque de estacionamento daquele Shopping. Um parque preparado para receber à volta de 60 viaturas e que continha cerca de 10. Não encontrei motivos para alarme... Aliás, até fiquei contente. Afinal, o que se quer é fugir à maralha e se havia coisa que ali não existia era, de facto, maralha. Na realidade, não me preocupei até entrar no parque de estacionamento coberto. Aqui, num espaço preparado para várias centenas de carros estava apenas a módica quantia de 1... Com um casal de indivíduos visivelmente espantado em avistar a presença de outro ser humano, como dois javalis encadeados no meio de uma estrada à noite a olhar p'ra mim. Dei meia volta e continuei a tentar entrar no recinto do centro comercial.

Digo continuei porque, e não sei porquê, todo o shopping me parece armadilhado. Como se se estivesse a defender de um qualquer exército invasor. Aquilo são corredores que não dão a lado nenhum, portas que não abrem, escadas encerradas, becos sem saída... Tanto que sou obrigado a concluir que só por sorte não me derramaram azeite a ferver em cima, atirado do alto do edifício por uma horda de guerreiros medievais. A parte das escadas é particularmente difícil. Originalmente eram rolantes mas, dada a ausência de público, calculo que a administração do shopping tenha percebido que estava ali uma gastação de energia incomportável. Como é que eles resolveram o problema, perguntam vocês?! Desligando as bichas da corrente e tapando os degraus com uma cobertura de madeira, claro está. Conferindo à escadaria não só um aspecto bastante ridículo mas também uma extrema dificuldade em subir, porque cada um destes degraus tem, como é sabido, cerca de meio metro de altura. Eu sou uma pessoa doente mas ainda consigo dar conta do recado porque sou novo. Agora para velhotes, crianças de colo e coxos é um fartote uma pessoa estar ali ao lado a apontar e a rir. E assim se passa um Domingo bem passado...

Com dificuldade, chegámos à zona da restauração para encontrar três restaurantes abertos, duas ou três pessoas esquecidas pelo tempo e uma imensa tristeza a pairar no ar... A sério, o espaço era tão deprimente que não conseguia deixar de pensar em cachorrinhos orfãos, em esquimós a matar focas bébés à paulada e no Benfica a passar outra temporada só com uma Taça da Liga. Por pouco, não consegui conter as lágrimas. Tendo três soluções à nossa escolha para almoçar, e porque é conhecido o meu faro por tudo o que é merdoso, optámos claramente pela pior. Quer dizer, do lado de fora o restaurante nem parecia mau. Tinha ar de italiano com uma grave crise de identidade. Ou seja, o menu era de comida italiana mas lá dentro era tamanha a miscelânea de cores, imagens e referências que só me apeteceu recomendar-lhe umas sessões de psicoterapia. O empregado, que estava convenientemente mascarado à pinguim, aproximou-se da mesa e apontou os nossos pedidos que consistiam em dois pratos de tortellini. Passados quinze minutos tínhamos na mesa duas saladas. Assim, sem mais nem menos.

Quer dizer, se se escavasse na cebola e no tomate com alguma insistência, mais tarde ou mais cedo o tortellini havia de dar um arzinho da sua graça. Mas ainda assim, pareceu-me pouco e até um pouco insultuoso. Ora, eu não gosto de salada. E como não havia qualquer referência a ela no prato que tinha pedido não achei relevante indicar isso. Por exemplo, ninguém vai a uma marisqueira, pede arroz de marisco e considera fundamental avisar o empregado para não colocar nenhuma cabeça de leitão na panela. Portanto, segundo a mesma linha de raciocínio, fiquei estupefacto com a iguaria que o pateta de paletó me colocou na mesa. Assim, chamei-o, pedi desculpas pelo incómodo e solicitei que me retirassem a salada no prato. De uma forma branda porque também sou pateta, embora não costume usar paletó. E o pinguim assim fez, exactamente como pedi... Levou o prato para dentro e, em menos de nada, voltou a colocar-mo em frente da cara, sem salada mas com a mesma quantidade de massa que tinha inicialmente (o equivalente a uma colher de sopa). No entanto, a avaliar pela quantidade de óleo que escorria pelo tortellini e que daria certamente para pôr um motor de uma avioneta a funcionar, julguei por bem não reclamar, engolir a mixórdia e pôr-me a andar dali p'ra fora.

Afundado em azia, que ao menos impediu que ficasse com fome, decidi ir dar uma volta pelas supostas lojas até ser hora de me dirigir à zona dos cinemas. A parte comercial do shopping não se afigurou menos trágica do que a da restauração, com o número de logistas a ultrapassar largamente o de visitantes. Eu ainda estive para lhes sugerir que fizessem compras nas lojas uns dos outros para ajudar e incentivar o negócio, mas ao avistar as expressões desoladas das suas faces concluí que a esperança abandonou aqueles corações há muito. A cada passo pelos corredores imensos e vazios do Beloura, parecia que ouvia Aimee Mann na sua balada mais triste... E se ali encontrasse uma forca devidamente pronta a usar ainda pensava duas vezes se não aproveitava e dava logo ali por terminada a tarde. Na zona comercial, além de toda a pobreza franciscana há a registar duas coisas: a loja dos animais e a tabacaria. A primeira, não há dúvida nenhuma, é o estabelecimento mais fácil de encontrar em todo o shopping. Não que esteja particularmente bem situado ou sinalizado mas porque o cheiro acre e nauseabundo começa a fazer-se sentir em São Pedro do Estoril. Eu que sou uma pessoa que gosta de animais decidi passar pela frente da loja a correr ao pé coxinho, com dois dedos na boca a conter o vómito e a tentar equilibrar-me com as tonturas. Não cheguei a perceber se o cheiro era dos pobres bichos enjaulados, se da ração que está à venda e que dada à ausência de compradores começa já a ficar podre ou do pobre indivíduo atrás do balcão que dado o aspecto já não devia ver água e sabão há uns anos valentes. Seja como for, fica à atenção da ASAE porque aquilo é um bedum que meu Deus Nosso Senhor... Não pertence a este planeta.

Dado que o filme só começava às 16h e que o almoço, de tão terrível, foi despachado em menos de nada, decidimos entrar na tabacaria para comprar umas revistas e transportar a mente para outros locais melhores. Na montra, havia um aviso que dizia o seguinte: "A CONSULTA DAS PUBLICAÇÕES IMPLICA A COMPRA DAS MESMAS!" Apesar de agressivo, compreendi logo a exigência. É que de outra forma seria impossível controlar os milhares de pessoas que se espezinhavam e agrediam perante os escaparates de revistas amareladas do casebre... Enfim, apesar de tudo eu sabia o que queria e saí de lá rapidamente deixando p'ra trás a minha mulher que ainda ficou a dar conversa a uma velha que lhe queria impingir uns DVD's foleiros.

Enfiei-me na ala dos cinemas como uma lebre em pânico e de lá não saí até ao fim do filme... Filme esse que só começava dali a duas horas.

Comprámos os bilhetes aos vinte empregados que se encontravam no recinto, uns atrás das caixas registadoras a roer as unhas, outros a limpar o chão que não tinha nada p'ra limpar e ainda outros apenas a olhar para o infinito, lamentando a ausência de público e a merda da vida em geral. Antes de nos sentarmos a ler as revistas, decidimos jogar um joguinho de "air hockey" (para quem não conhece joga-se numa mesa esburacada que deita ar, com dois manípulos esquisitóides e um disco, e o objectivo é enfiá-lo no buraco do opositor - salvo seja). Ora, certamente derivado da falta de uso, os manípulos estavam colados à mesa e sempre que os deixávamos pousados mais de cinco segundos voltavam a colar-se outra vez. Ar a sair do tampo, aquilo que confere a velocidade e animação ao jogo, era só de vez em quando, p'ra poupar luz, à semelhança das escadas rolantes de madeira. E foi assim, com as peças de plástico a rasparem na mesa como se estivessemos a afiar um cutelo, numa chinfrineira dos diabos, que jogámos desconfortavelmente entre o desejo de um final rápido e digno, para seguirmos em frente com as nossas vidas.

Posto isto, pegámos nas revistas e fomos para a esplanada. Esplanada essa que tinha, adivinharam, praticamente ninguém. Quer dizer, ninguém humano porque aquilo estava povoado por uma selecção de bonecos à escala real, que variava entre o bizarro e o estúpido. Eu sei que aqueles cinemas fazem parte de uma coisa chamada "CinemaCity" e que é suposto terem estátuas de personagens de filmes a decorar o espaço... mas parece-me que a malta do Beloura se entusiasmou um bocadinho. À entrada dos cinemas temos o Schwarzenneger na pele de Extreminador Implacável a dar as boas-vindas. Até aí tudo bem. Mas depois pelo espaço é um sem fim de palhaçada desconexa que mete astronautas, lutadores de wrestling, jogadores de râguebi, bicharada e tudo mais ao barulho sem critério nenhum... O que me leva a crer que, a dada altura e por alguma razão idiota, alguém tinha aquela lixarada toda no quintal a ganhar pó e, talvez pressionado pela mulher ou pelas autoridades competentes, decidiu levar para lá muito a contragosto.

Na esplanada, tive de ler a minha revista com um dos Blues Brothers sentado a olhar fixamente p'ra mim. Do outro lado do recinto, um dinossauro agachava-se numa posição ameaçadora, fazendo pandilha com uma vaca vestida à cowboy. Uns metros depois, estava o outro dos Blues Brothers de costas para o irmão, dando a entender que alguma desavença terá havido entre eles, com nova vaca, agora vestida à homem-aranha, junto a ele. A encabeçar todo este grupo psicótico, um índio olhava o horizonte, como que vislumbrando uma maneira de escapar e voltar para o Perú. E foi na companhia desta cambada, que num qualquer outro sítio me levaria a marcar de imediato novos exames à cabeça mas que ali me pareceu perfeitamente normal, que esperei com paciência até que o raio do "John Carter" começasse.

Bom, daí p'ra frente não vale mais bater no ceguinho...
Não vou debruçar-me sobre o facto de não haver água p'ra lavar as mãos na casa de banho depois do xixi ou de, inexplicavelmente e na toada "Twilight Zone" que povoa aquele shopping, o cinema ter ficado atolado de criançada até às orelhas de um momento para o outro... Vi o filme, escalei as escadas rolantes de madeira e segui a passadas largas até ao parque de estacionamento deserto enquanto a minha mulher maldizia a sua vida ao meu lado e fazia contas de me assassinar para não ter de voltar a pagar o empréstimo da casa ao banco.

O Beloura Shopping é de facto um zombie comercial e muito me admira que ainda esteja aberto. Não desejo mal às pessoas que lá trabalham, para elas toda a minha solidariedade, mas é certo que aquele espaço não pode estar a dar senão prejuízo. E se não dá ainda mais é porque ainda há fulanos como eu que decidem lá passar as tardes de Domingo. Mas ainda assim, parece-me que tenho de começar a ter mais cuidado com as minhas escolhas num futuro próximo...

A minha mulher é um doce mas não tem sangue de barata.
Já a fiz passar por muito e qualquer dia vira-se a mim.

Acho que vou fazer um workshop com o Paco Bandeira, por causa das coisas...

4 comments:

Sexinho said...

Só aí estive duas vezes; a primeira e última.
Gostei tanto que decidi nunca mais voltar. e foi há anos!
Aquilo até dá medo! Serio!
Agora um ponto positivo; comprei lá uma camisa muito jeitosa (já não me lembro em que loja) e esqueci-me de um par de óculos novinhos (comprados p´raí há um par de horas e carissimos) dentro do provador.
Só dei por isso umas duas horas depois e voltei lá a correr pensando "Ai Jesus que já mos gamaram".
Não senhor; lá estavam eles no exacto sitio onde os tinha deixado, justamente porque todo o centro está às moscas e não tinha entrado mais nenhuma alminha desde a "je".

Palmier Encoberto said...

"Derivado" ao riso histérico, a minha cadela olha-me agora desconfiada... tenho receio de ser atacada!

Outra Maria said...

obg pela dica menos um shopping para visitar... os seus posts fazem rir á gargallhada, ate as lagrimas me chegam aos olhos de tao belas descricoes :D

André Oliveira said...

Viva Maria. Não é propriamente um shopping a evitar... Pode até ser um viveiro de histórias para contar num serão entre amigos... Além disso o hipermercado é muito bom. ;)