Friday, August 27, 2010

Carta aberta ao meu vizinho

Ora então parece que vou mudar de residência muito em breve. Vou-me embora de Benfica. Não, não vou ser expulso da actual casa por incumprimento de renda, essa tem sido paga a tempo e horas, mas decidi que estava na altura de seguir para outras paragens.

E aí sim tenciono não pagar a renda. Mas isso é outra história...

Ao contrário do que imaginei quando me mudei para aqui, o dia da minha partida não será marcado por dezenas de vizinhos em lágrimas, observando com mágoa a saída do mais cintilante foco de luz e alegria que passou pela Rua da Venezuela nas últimas décadas... Para os mais desatentos, isso seria eu.

Ao contrário do que imaginei no passado, afigura-se-me que não é nada disso que se irá passar. Primeiro, porque depois de 2 anos e meio de aqui estar não conheço as pessoas que moram neste prédio. E assim sendo seria estúpido se eles desatassem a chorar quando me vissem a ir embora. Segundo, porque os poucos que reconheço de vista são uma cambada de broncos mal encarados que não perceberiam a sensibilidade nem que ela lhes desse uma lambada com toda a força nas trombas. E isto, atenção, é dito por alguém que é sensível... uma vez mais, para os desatentos, estou a falar de mim.

Ora, se grande parte dos meus vizinhos nutre por mim o mesmo tipo de desprezo que eu nutro por eles, orgulho-me em dizer que há um que é especial: o camarada aqui do apartamento ao lado.

Um tipo encantador que gosta de exprimir o seu encanto em pancadas na parede sempre que eu, ou alguém que esteja em minha casa, faça um som ligeiramente mais alto do que uma torneira a abrir, de um ratinho a chiar ou de uma folha sêca a cair no chão. Manias...

Eu podia aproveitar isto do blogue e da net para vociferar uma catrefada de insultos e ordinarices arbitrárias para me despedir do indivíduo. Mas ao invés disso, decidi ser o "bigger man" e deixar-lhe aqui uma carta aberta, de homem para homem, de modo a resolvermos a bem o mau ambiente que se gerou e que acompanhou a nossa convivência predial nos últimos tempos.

Ora então cá vai...


Prezado Boi

Perdoa iniciar esta carta apelidando-te de bovino mas a verdade é que não sei o teu nome e o emprego do dito animal deve-se às suas numerosas qualidades. Porque é um exemplo de força. Porque é um símbolo de nobreza.

Ah e também porque é cornudo.

Imagino que não vás sentir a minha falta e contente decerto ficarás quando souberes que vou definitivamente para longe de ti. Muitas foram as vezes que ouvi pesadas murraças na parede da minha sala durante amenos jantares aqui passados, sempre que alguém, imaginem lá o displante, se risse um pouco mais alto...

Atenção. Eu entendo a tua aversão ao riso.

Se eu tivesse a tua aparência, acredita que também não tinha vontade nenhuma de me rir e era possível que me irritasse no mais profundo das entranhas se alguém junto a mim o fizesse. Mas também não nego que essa tua implicância me fez lembrar aquele monge velhaco do "Nome da Rosa"... Sabes qual é? Aquele que desatou a matar os outros porque tinham descoberto um livro de anedotas e ele achava que o riso era diabólico e próprio dos macacos. Qualquer coisa do género.

Apesar de considerar praticamente nazi o teu horror a tudo o que é gargalhada sinto-me agradecido por não me teres vindo para aqui encher os livros de veneno. Não me interpretes mal, não me afectaria porque eu pouco leio, é mais porque não gostava que entrasses cá em casa. Gosto de ter um certo controlo nesse aspecto.

Bateste muitas vezes na parede, e tu sabes disso, pelos já falados risos, a principal razão, por uma ou outra expressão mais efusiva de surpresa ou alegria, como tu detestas isso, ou até pelo barulho que fazem sandálias a cair no chão, ao serem descalçadas. Esta então é a melhor. E uma vez mais estou ao teu lado nesta matéria. Aquele estalo que as sandálias fazem no contacto directo com o soalho é sem dúvida um enorme flagelo. Nem sei como aguentaste tudo isso sem fazer queixa à polícia, mas portaste-te como um homenzinho e por isso te agradeço. Ao invés, deste pancadinhas na parede. Sim senhor.

Eu sei que ficas assim irritadiço porque precisas de dormir à noite. Sei que és um homem de negócios... Não propriamente de negócios mas de UM negócio: uma tabacaria a 200 metros aqui do prédio. Daquelas que, para além dos tabacos, dos jornais e da pornografia, também vendem bonitos gatos de louça e outros bibelôs que, apesar de estarem à venda, já fazem parte da mobília por ali estarem há tantos anos.

Percebo que te levantas da caminha sempre às 6 da manhã para abrir o estaminé, todos os dias do ano sem pausas semanais nem férias nem Natal nem nada mais que o valha. Podia ter pena de ti mas não tenho. Muito sinceramente, quero que te lixes. E quero que te lixes não por despeito ou por que me sinta picado pelas tuas pancadinhas carinhosas. É mesmo porque és estúpido.

Tanta dedicação para quê?! Nunca vais a lado nenhum... Nunca gastas o dinheiro para o qual tanto te esforças em nada que se veja ou que valha a pena. Não integras projectos de solidariedade, não visitas os amigos (se é que os tens), não privas com prostitutas, não fazes nada. Casa-Tabacaria. Tabacaria-Casa. A tua vida limita-se a 200 metros p'ra lá e p'ra cá. 200 metros de ambição, o terreno que pensas que já conquistaste e no qual julgas ser O MAIOR.

E és pá. Fica lá com a taça.
Fica lá com este trecho da Rua da Venezuela todo para ti. Quero lá saber.

Pessoalmente considero que quando é isto o nosso Shangri-La, é sinal que algo está errado. Até porque, e desculpa estar a tocar na ferida, não estás a ir p'ra novo, meu caro. E além disso esse penteado é um enorme entrave à aproximação das gajas. Estou só a dizer...

Outra coisa que justifica seres ainda solteiro, e, permite-me dizê-lo, azedo com'á m***a, é o cheiro intenso a peixe frito que emana do teu casebre quase todas as noites. Que raio é aquilo, pá?! És um aficionado de peixe frito, é? E não sabes que isso, mais do que todo o barulho do mundo, justificaria eu passar o serão às marradas à mesma parede onde dás murrinhos sempre que alguém, segundo os teus parâmetros, "passa das marcas" em termos sonoros? É um pivete que não se aguenta!

Mas a verdade é que nós nunca fizemos assim tanto barulho... Nem nada que se pareça. Foste mesquinho, há que dizê-lo. E também há que dizer que o meu desejo mais profundo é que venha cá para casa um de dois: ou o elenco inteiro do Circo Cardinali, anões incluídos, disposto a ensaiar toda a santa noite, ou os Pólo Norte. Aí é que ias ficar com a mãozinha feita em papa, amigo.


E ao ver-teeeeee, Lisboa Lisboaaaa...

(pum pum pum)

Perdereeeeee o Bairro da Madragoaaaaa...

(PUM PUM PUM)


Não era mais que justo e era o que merecias.

Está pois na hora de me despedir. Não com amizade, à Sousa Veloso, porque és uma besta, mas com a mesma rudeza com que lidaste com a minha presença durante a nossa condição de vizinhos.

Apesar de tudo desejo-te o melhor. Que alguém finalmente compre pelo menos um dos gatos de louça ordinária que vendes na tua xafarica e também que consigas acrescentar mais 100 metros ao teu percurso diário até morreres. Talvez passes a ir à tasca da esquina beber uma imperial ao final do dia. Seria uma boa maneira de gozares os teus anos dourados.

Um grande abraço deste que não pode contigo

Saguim

Sunday, August 8, 2010

Ele há coisas...

Há coisas na vida para as quais não tenho resposta.

Eu e todos nós, diga-se. Por muito inteligentes que consigamos ser, por muito cultos ou perspicazes, há sempre uma ou outra coisa que nos escapa e nos deixa boquiabertos, com ar de mongos. Eu julgo até que é nesses momentos que toda a raça humana se encontra: novos e velhos, pobres e ricos, pretos e brancos... Tudo com a boca aberta, fio de baba pendente e ar perdido. Porque há coisas que estão destinadas a constituir mistério para todo o sempre.

Uma destas questões por resolver, no que diz respeito ao meu percurso até à data, é a seguinte:

Porque é que, quando eu andava na escola, aquele que sacava mais miúdas era um indivíduo que exibia um pedaço permanente de ranho verde entre uma das narinas e o topo do lábio superior?

Isto, tal qual.

Ehpá porquê?

É que o rapaz apresentava-se assim todos os dias sem excepção. E o gajedo atirava-se aos seus pés, sedentas que estavam da sua atenção, indiferentes ao aspecto repugnante e, justifica-se a comparação, mongolóide, do imberbe. Eu na altura julgava que ele não se apercebia que era ranhoso e que mantinha aquilo ali por uma questão de desleixo ou ignorância. Hoje a única certeza que tenho é que ele não só sabia que tinha ranho como o deixava ali estar como uma qualquer estratégia doentia de Dom Juan de trazer por casa. Porque se há malta que aprecia ver meninas a esfregar-se em balões ou até ter as partes baixas pisadas por sapatos com salto de agulha, então isto do ranho verde é capaz de ser o grau zero dos fetiches pervertidos.

Para o sujeito, o ranho atraía namoradas assim como aquelas fitas da cola castanha atraem e aprisionam moscas. Era certinho.

E eu nunca percebi porquê.

Mas, ao mesmo tempo, aceito que o mundo é mesmo assim, há coisas que também só têm piada se ficarem no limbo das certezas. Será que há vida depois da morte? Haverá seres extraterrestres? O universo é mesmo infinito? Porque é afrodisíaco o ranho verde? Tantos e tão maravilhosos mistérios que, só por si, concentram a piada que é estar vivo.

No entanto, quero crer que isto do ranho não está ao alcance de qualquer um. Há que saber usá-lo. Não foi com certeza com muco que conquistei a minha mulher. Uma vez atirei-lhe com um copo de galão em cheio na cara, em golfadas, mas isso foi porque me engasguei e não porque estivesse a fazer uso de algum tipo de charme. Sei o que estão a pensar: galão e ranho não são de todo a mesma coisa... Mas quando se apanha com café com leite regurgitado na tromba é igualmente nojento. Se fosse ranho a reacção dela teria sido a mesma: um sorriso gracioso, um movimento suave em direcção à porta e o caminho até ao duche de casa em doces passadas, sem dizer palavra.

Os choninhas todos do mundo podiam imitar o mítico pedaço de ranho verde que, estou certo, pouco conseguiriam retirar do look. Aquele indivíduo exibia-o com mestria, com um tipo de autoconfiança arrogante de quem está seguro do seu ranho, de quem tem a certeza que é "o maior". E que só irá partilhar o muco com a tipa que o merecer. Que foram muitas, na altura.

Passados estes anos todos penso que fiz as pazes com o universo. Continuo a pensar nisto bem mais do que devia, bem sei, mas resolvi aceitar que nunca vou entender exactamente o que se passou. Havia ranho, não há dúvida disso. Ele era bem evidente, com um tom de verde que de tão vivo às vezes parecia ter luz própria (o que devia dar um jeitão à noite a atravessar as ruas) e a sua consistência era perfeita: não tão rijo que o fizesse secar e não tão mole que o tornasse líquido e escorregadio. Estava no ponto. Exactamente no ponto.

Hoje, o indivíduo deve ser, seguramente, alguém que sim senhor. Daqueles que aparecem nas revistas agarrados às miúdas dos Morangos ou àquelas outras que não se sabe bem o que fazem, embora se desconfie que estão isentas de impostos. Estou certo que o tipo hoje tem tudo: dinheiro, sucesso, coca e muitas beldades no seu leito.

O suficiente de fama e fortuna para garantir que na redacção da revista vai haver alguém que abra as fotos no Photoshop...

E QUE LHE APAGUE A PORRA DO RANHO!!!